A bandeira vermelha, branca e azul no canto da sala e a cuia de tereré em cima da mesa não deixam dúvida: os hábitos paraguaios já estão incorporados à rotina do produtor paranaense Antonio Francisco Galhera, de 58 anos. Afinal, são quase quatro décadas vivendo no país vizinho. Mais do que um simples morar, Galhera contribui diretamente para o desenvolvimento econômico do Paraguai. O negócio dele é produzir diversas culturas agrícolas que exigem as duas mãos para contar, além da pecuária de corte.
Galhera desembarcou no Paraguai em 1983, quando o agronegócio por lá se resumia, praticamente, a produção de madeira, menta, algodão e alguns poucos grãos. Na época, o governo do presidente Alfredo Stroessner fazia propaganda pelo Paraná, principalmente nas regiões Norte e Oeste, para atrair produtores e, na bagagem, conhecimento e técnicas no ofício rural. “Quando chegamos, a estrutura agropecuária era bastante precária. Tivemos, inclusive, de trazer as máquinas do Paraná. Os fornecedores de insumo eram poucos. Os primeiros anos foram difíceis. Mas nunca pensamos em desistir”, relembra Galhera.
De lá para cá, o Paraguai se tornou uma referência mundial no agronegócio, ocupando, por exemplo, a quarta posição na produção da principal commodity agrícola, a soja, atrás apenas do Brasil, Estados Unidos e Argentina, e o décimo colocado no ranking dos exportadores de carne bovina. O estopim do desenvolvimento guarani se deu no início do século. Em18 anos, de 2000 a 2018, a oferta de soja foi multiplicada quase três vezes – de 3,5 milhões de toneladas para 10,2 milhões de toneladas (veja o gráfico na página 13). No mesmo período, a produção de milho cresceu quase 500% – de 947 mil toneladas para 4,6 milhões de toneladas. Tudo isso, principalmente, pelas mãos, suor e trabalho dos produtores paranaenses.
“Hoje, a agricultura do Paraguai é uma referência, com possibilidade de produzir ainda mais. Isso, com certeza, graças a vinda dos paranaenses, que trouxeram conhecimento, técnicas e tecnologias. Se não fosse assim, o Paraguai ainda estaria plantando mandioca e erva-mate”, destaca o produtor de São Jorge do Ivaí, na região Norte do Estado.
Galhera faz parte de um amplo universo de produtores do Paraná que, há décadas, atuam diretamente para colocar o Paraguai no mapa do agronegócio global. Não existem dados oficiais, mas segundo estimativa do presidente da Associação dos Produtores de Soja, Oleaginosas e Cereais do Paraguai (APS), Karsten Friedrichsen, mais de 15 mil brasileiros estão dedicados a atividade em solo paraguaio, sendo a esmagadora maioria de paranaenses. Isso sem contar os filhos destes agricultores e pecuaristas que, apesar da certidão de nascimento paraguaia, carregam o DNA pé-vermelho.
Referência do continente
Visto durante muito tempo como o “primo pobre” da América do Sul, na última década, o Paraguai arrumou a casa a ponto de se tornar uma referência, principalmente dentro do continente. Ano após ano, o país registra crescimento de fazer inveja as outras nações. Segundo as projeções do Fundo Monetário Internacional (FMI), a economia paraguaia deve registrar uma alta de quase 7% em 2019, enquanto o Brasil cerca de 0,9% e a Argentina algo em torno de 3%. Ainda, os hermanos podem registrar um salto no Produto Interno Bruto (PIB) de 42 bilhões de dólares em 2018 para 58 bilhões de dólares em 2023, alta de quase 40%.
E muito deste desempenho invejado pela concorrência está calçado na agropecuária, um dos pilares da economia. Nos últimos dez anos, o setor sempre beirou os 20% de participação do PIB (no Brasil, o índice é de 5,6%). Alcançar esse patamar exigiu trabalho árduo e dedicação por parte dos produtores paranaenses.
“Quando chegamos aqui, a agropecuária estava engatinhando. A safra de 1986 rendeu 34 sacas de soja por hectare. Esse era só um dos desafios. A região tinha apenas um silo. Entregar os grãos era bastante difícil. Às vezes tínhamos que rodar quilômetros de estrada de chão”, relembra o londrinense Paulo Mendes do Santos, de 53 anos, gerente da Fazenda Arroio Posuelo Imapõ, na cidade de Nueva Esperanza, no departamento de Canindeyú. Hoje, a produtividade média da soja no país vizinho bate na casa das 52 sacas por hectare, pouco abaixo do Paraná, com média de 58 sacas por hectare.
Mais do que apenas um espectador, Santos participou do desenvolvimento do agronegócio guarani nas últimas décadas. O gerente de voz grossa e números na ponta da língua chegou ao Paraguai ainda criança, em 1979, a tiracolo do pai, convocado para trabalhar em uma madeireira. Os primeiros passos ainda menino também foram dentro de uma empresa do mesmo ramo, na área administrativa. Até que, em 1994, a companhia, ciente do poderio rural do país, deixou de investir em madeira para se dedicar a agricultura e pecuária.
A aposta deu certo! Dos 10,5 mil hectares, a Fazenda Imapõ dedica 3,9 mil hectares a agricultura, principalmente plantio de soja, milho e trigo. Uma área semelhante é ocupada por 8,5 mil animais de corte (cria, recria e engorda). Ainda, 2,7 mil hectares são reserva legal. “Se os paranaenses não tivessem vindo desbravar, o povo paraguaio teria dificuldades. Nós trouxemos conhecimento e tecnologia para ajudar no desenvolvimento”, aponta Santos.
Nova geração
Apesar do pontapé inicial dos desbravadores, a nova geração formada pelos filhos tem garantido a continuidade do desenvolvimento da agropecuária guarani. Luciano Poland, 43 anos, chegou ao país vizinho em 2002, após se formar em engenharia agronômica na Universidade Federal do Paraná (UFPR), em Curitiba, três anos antes.
“Na época, o Paraguai não plantava 2 milhões de hectares. Hoje são mais de 3,5 milhões de hectares, com potencial para avançar ainda mais”, relembra. “A expansão foi feita de forma planejada e tecnificada, com o conhecimento dos paranaenses, o que reduziu a chance de erro. Os produtores do Paraná foram cruciais para o agronegócio do Paraguai chegar onde está”, acrescenta.
Ao lado do irmão Alexandre, também agrônomo, Luciano administra a propriedade de 5 mil hectares do patriarca Vitor, de 70 anos, na cidade de Iruña, no departamento de Alto Paraná. Além da produção comercial de grãos e ecuária e corte, os irmãos identificaram um nicho de negócio. “Existia uma dificuldade na oferta de semente na época. Vimos aí uma oportunidade para abastecer o mercado interno”, conta Poland.
Hoje, as lavouras da família são voltadas principalmente para a produção de sementes de soja e várias culturas de inverno como trigo, aveia preta e nabo forrageiro. “Entregamos inclusive para as cooperativas do Paraná que estão por aqui, como a Lar e C. Vale”, diz.
A caminhada dos produtores paranaenses em terras guarani comprova que a relação de ganha-ganha, desde o começo da investida no país vizinho, é um caminho assertivo para ambas as partes. “Não conheço ninguém que veio para cá e quis voltar”, sentencia Galhera. “Quem não veio tem arrependimento. E quem voltou, também”, acrescenta Santos. “Meus filhos nasceram aqui, minha vida é no Paraguai, um lugar receptivo e que o governo valoriza o produtor”, conclui Poland.
Na esteira, empresas e cooperativas desembarcam no Paraguai
Nas últimas décadas, o processo migratório maciço de agricultores e pecuaristas paranaenses para o Paraguai forçou uma remodelagem na atuação de empresas e cooperativas do setor rural. Com os clientes/associados do outro lado da fronteira, as organizações voltadas para prestação de serviços e produtos se viram “obrigadas” a fixar base em solo guarani. Afinal, os produtores precisavam de uma retaguarda eficiente.
A cooperativa Lar, de Medianeira, na região Oeste do Paraná, está no Paraguai desde 1997. Na época, a empresa [no país vizinho, a Lar não é uma cooperativa] precisava de soja e milho para abastecer as fábricas de ração. Junto a isso, muitos produtores pediram para que a empresa vendesse insumos e prestasse assistência técnica, assim como no Brasil. Ou seja, bastava unir o útil ao agradável. Hoje são 12 unidades de recepção de grãos, além da sede administrativa, na cidade de Mbaracayu, que atendem 1,1 mil clientes.
A C. Vale, de Palotina, no Oeste, também seguiu para o país vizinho. A empresa abriu unidades para fornecer insumos e receber grãos dos associados com terras por lá. Atualmente são três plantas, nas cidades de Katuetê, La Paloma e Corpus Christis.
Mesmo quem não tinha um renome de peso no Brasil, resolveu arriscar no país vizinho. Há cinco anos, os agrônomos Élson Buaski e Gilmar Castro montaram a Conect, empresa de consultoria agrícola, entre outros serviços como gestão de controle de fazendas, com sede em Katuetê. Passado o período de adaptação, a Conect conta os louros. Consolidada, a empresa presta serviço para quase 100 produtores no país vizinho, que somados chega em torno de 250 mil hectares.
“Ainda existe muita terra em área periférica para abrir. O país tem plenas condições de aumentar a área, produtividade e produção”, garante Castro. “Durante os 10 anos que fui instrutor do SENAR-PR observei o movimento de produtores vindo para o Paraguai. O agronegócio do país está em franco desenvolvimento. O produtor paranaense tem aptidão agrícola, veio para produzir e colabora diretamente para o desenvolvimento da atividade no país”, complementa Buaski.
Cidadão do Paraná, do Paraguai, do mundo
No primeiro momento, o jeito simples e a voz calma podem passar a impressão de que o produtor Antonio Francisco Galhera esteja, como se diz por aí, “com a vida ganha”. Por mais que as quase quatro décadas de muito trabalho no Paraguai tenham permitido fazer um bom pé de meia, Galhera ainda tem “muita lenha para queimar”, como o próprio define. Tanto que os planos futuros são audaciosos, a ponto de atravessar um oceano, literalmente.
Mas nem sempre Galhera encontrou bonança. Antes mesmo de chegar ao Paraguai, em 1983, o produtor enfrentou adversidades. Ainda na terra natal, em São Jorge do Ivaí, na região Norte do Paraná, viu a geada negra exterminar os cafezais da família, migrando a terra para soja.
Anos depois, em um negócio feito pelo avô materno, passaram a cultivar em Apucarana, também na região Norte. “Naquela época, eu trabalhava recebendo menos para pagar o aluguel [da casa onde morava] para o meu avô”, relembra. O patriarca dos Galhera ainda chegou a comprar terras em Goiás, mas rapidamente, por conta da febre tifoide, doença que acometia a região na época, trocou por uma área de 120 hectares de terra dobrada em Corbélia. Anos depois, não satisfeito, nova troca, por 1,2 mil hectares na cidade de Los Cedrales, no Paraguai.
“Meu avô tinha 10 filhos. Vieram cinco e eu, pois era o único que tinha conhecimento de trator”, conta. “Os primeiros anos foram difíceis. Pegamos muita chuva na hora de abrir a terra, ocorreu atraso no plantio e seca no desenvolvimento das plantas. Até que os tempos foram melhorando”, complementa.
O esforço valeu a pena. Hoje, Antonio é o presidente do grupo Hermanos Galhera Agro Valle Del Sol, junto com outros três irmãos, que chegaram ao Paraguai em 1985. “Eu trouxe eles, pois vi futuro aqui”, relembra. A empresa administra 22,5 mil hectares, sendo 4 mil próprios, espalhados por três municípios (além de Los Cedrales, Canindeyú e Caaguazú). Para cobrir tanta terra, uma diversidade de culturas: soja, trigo, milho, canola, girassol, nabo forrageiro e chia.
“O agronegócio do Paraguai não deixa nada a desejar para outras potências do mundo. Tecnologias que saem na Europa e nos Estados Unidos, rapidamente chegam por aqui”, afirma o garoto propaganda de uma marca de maquinário agrícola, com direito ao rosto estampado em outdoors pelas estradas do país.
Apesar das décadas dedicadas a terra, Galhera tem um futuro ainda incerto. Não sabe se leva a agricultura para região do Chaco, algum país da África, como Angola ou Moçambique, ou mesmo atravessa o globo até a Nova Zelândia. A única certeza é de que não ficará parado. “Vou produzir alimentos em algum lugar”, sentencia.
Chaco: nova fronteira ainda impõe desafios
Assim como ocorreu no Brasil com a região do Matopiba (Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia), o Paraguai também está abrindo uma nova fronteira agrícola. Recentemente, os produtores
rurais, muitos paranaenses, voltaram os olhos para região do Chaco, no Norte do país. Apesar da terra vasta e dos preços ainda atrativos para aquisição da terra, a lista de desafios é extensa,
a começar pelo clima.
“Não chove o ideal. Apenas em alguns bolsões os índices pluviométricos são bons para agricultura”, destaca o agrônomo Élson Buaski, sócio da empresa de consultoria agrícola Conect.
Por conta deste obstáculo climático, a agricultura avança de forma cautelosa pela nova fronteira agrícola. “Ainda não tem tecnologia [semente] para combater a pluviometria na região, pois falta chuva. O pessoal com agricultura está se batendo”, diz Paulo Mendes do Santos.
Porém, no ritmo inverso, a pecuária de corte já está consolidada no Chaco, principalmente na parte Sul. O grupo no qual Santos é gerente tem 7 mil cabeças de gado espalhadas por 20 mil hectares na região. “Para a pecuária é excepcional. Há água de sobra no subsolo, já com os sais que os animais precisam”, comemora Santos.
Mesmo diante das adversidades, muitos produtores planejam ir para nova fronteira. Antonio Francisco Galhera quer fixar bandeira por aquelas bandas. “Essa é a hora de ir”, garante. O plano envolve vender 48 hectares em Los Cedrales, parte da herança do avô, para comprar algo em torno de 2 mil hectares na nova fronteira agrícola guarani.
Quanto da área do Chaco pode ser ocupado pela agropecuária? Enquanto alguns falam em torno de 1 milhão de hectares, outros, mais reticentes, dizem 500 mil hectares. A única opinião unânime é de que o conhecimento e tecnologias dos paranaenses serão fundamentais para consolidar o Chaco como região produtora.
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Fonte: Sistema FAEP