Estudos realizados pela Embrapa Amazônia Ocidental (AM), em parceria com três universidades brasileiras, demonstraram que o guaranazeiro possui microrganismos com potencial biotecnológico para agricultura e saúde humana. Ferramentas de biologia molecular permitiram desvendar cientificamente um “micromundo” com milhares de endofíticos (organismos inofensivos à planta) no microbioma dessa espécie. Esses estudos levaram à prospecção de microrganismos e moléculas de interesse para a agricultura e saúde humana.
Conhecer cientificamente o “micromundo” dos endofíticos abre possibilidades para entender não apenas mecanismos associados à planta hospedeira, mas também oferecem a possibilidade de aplicação desses microrganismos em outras plantas diferentes daquelas onde foram encontradas.
Os estudos aconteceram por meio do projeto de pesquisa “Microoma – Microbiomas amazônicos, uma abordagem para sustentabilidade e prospecção de bioativos”, desenvolvido em parceria pela Embrapa Amazônia Ocidental, Universidade Federal do Amazonas (Ufam), Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT) e Universidade Federal de Viçosa (UFV), com financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). A coordenação geral do projeto na Capes foi da professora Jania Lília Bentes, da Ufam.
Sobre os endofíticos
Os endofíticos vivem em simbiose com a planta hospedeira, exercendo algumas funções no seu desenvolvimento, como fornecimento de nutrientes ou síntese de hormônios. Há também indícios de sua possível ação no controle de agentes de doenças nas plantas.
Por essas características, são vistos como fonte para o desenvolvimento de novos produtos biotecnológicos com aplicação na agricultura, seja como promotores de crescimento de plantas ou como alternativa para substituir ou reduzir o uso de agrotóxicos. Entretanto, para se chegar a um produto final, são necessárias várias etapas de pesquisa e bioensaios.
Ao estudar o guaranazeiro, o projeto Microoma teve como foco a detecção de microrganismos cultiváveis e não cultiváveis, buscando identificar as espécies com potencial biotecnológico. Os microrganismos selecionados não causam doença ao guaranazeiro. Por isso, são considerados endofíticos, ou seja, são capazes de conviver no interior da planta, colonizando seus tecidos sem causar danos, e inclusive podem exercer funções que auxiliam a planta.
As plantas de guaranazeiro utilizadas na pesquisa do microbioma foram coletadas no Amazonas, nos campos experimentais da Embrapa nos municípios de Manaus e Maués, onde se mantém o Banco Ativo de Germoplasma (BAG), que tem como principal finalidade a conservação da diversidade genética do guaranazeiro para uso em pesquisas.
A partir desse material, o Laboratório de Biotecnologia e Ecologia Microbiana da UFMT isolou centenas de bactérias e fungos cultiváveis, que foram posteriormente identificados com o auxilio de técnicas moleculares no Laboratório de Biologia Molecular da Embrapa Amazônia Ocidental. Após triagem e identificação dos microrganismos, foram selecionadas várias bactérias e fungos presentes no microbioma do guaranazeiro, com possibilidade de futura transformação em produtos.
“Foram encontrados vários microrganismos com potencial biotecnológico, seja para atividade antimicrobiana e anticâncer”, afirma Gilvan Ferreira da Silva, que coordena na Embrapa Amazônia Ocidental as ações do projeto de pesquisa Microoma.
A partir desses estudos estão sendo desenvolvidas outras pesquisas sobre a possível aplicação desses microrganismos, como por exemplo, no controle de patógenos em culturas agrícolas de interesse.
Em uma segunda fase do trabalho foi realizado o metagenoma bacteriano e descobriu-se uma grande diversidade microbiana associada à planta do guaranazeiro. Os resultados foram publicados na edição de 14 de novembro no World Journal of Microbiology and Biotechnology. “Foram identificados mais de 19 filos de bactéria, 32 classes, 79 ordens, 114 famílias, 174 gêneros e o equivalente a 1.520 espécies de bactérias morando no guaranazeiro, vivendo harmonicamente com a planta”, relata o pesquisador.
Melhoramento do guaranazeiro gerou 20 novas cultivares
O guaranazeiro é uma planta nativa da Amazônia, de cujos frutos processados se faz o pó de guaraná, popularmente conhecido pelo seu uso como estimulante. Estudos apontam que o guaraná é rico em cafeína e apresenta propriedades antioxidantes. A Embrapa Amazônia Ocidental mantém o único banco de germoplasma e programa de melhoramento da espécie no mundo. Vinte cultivares produtivas e resistentes às principais doenças dessa planta foram lançadas ao longo dos últimos 40 anos.
O projeto Microoma, iniciado em 2014, foi direcionado para a caracterização do microbioma de duas espécies nativas da região amazônica e que são culturas importantes do ponto de vista econômico. Além do guaranazeiro (Paullinia cupana var. sorbilis), também a seringueira (Hevea brasiliensis) foi contemplada no projeto. E tanto em guaranazeiro quanto em seringueira foram identificadas várias espécies novas de microrganismos.
Banco de microrganismos é fonte de bioprodutos
As pesquisas levaram à formação de um banco de microrganismos depositado no Laboratório de Biotecnologia e Ecologia Microbiana, do Instituto de Biociências da UFMT. Esse banco possui fungos e bactérias e está sendo utilizado como fonte de prospecção para outras pesquisas.
Em um dos trabalhos desenvolvidos no grupo de pesquisa em Biotecnologia e Ecologia Microbiana da UFMT, a professora Rhavena Graziela Liotti conseguiu obter linhagens de microrganismos endofíticos de guaraná com forte potencial biotecnológico para controlar patógenos pré-colheita e pós-colheita em pimentão, além de serem capazes de promover o crescimento dessas plantas, como informa o professor da UFMT Marcos Antônio Soares (foto), coordenador do grupo de pesquisa.
No estudo verificou-se o potencial de um desses microrganismos no combate a um fungo do gênero Colletotrichum, causador da antracnose no pimentão, e o microrganismo também protegeu a planta do Fusarium, que ataca as raízes e reduz o crescimento da planta. As plantas de pimentão em que foi inoculado o microrganismo do guaranazeiro cresceram mais e com mais biomassa, relata o professor da UFMT Marcos Soares.
Soares afirma que em outro trabalho desenvolvido a partir do banco de microrganismos endofíticos do guaranazeiro, o estudante Fábio Azevedo conseguiu obter linhagens de fungo que produzem moléculas de interesse farmacêutico com atividades antimicrobiana e anticancerígena. Na avaliação de um desses compostos foi verificada sua ação para matar células tumorais na condição in vitro.
“O guaranazeiro é uma reserva natural de microrganismos importantes para a indústria farmacêutica”, constata o professor.
Estudo é pioneiro no metagenoma total da planta
A biologia molecular é fundamental para avaliar a biodiversidade de microrganismos endofíticos associados a uma planta.
Em um primeiro estudo dentro do projeto Microoma, em 2018, havia sido identificada, por meio de técnica de cultivo in vitro, comunidade bacteriana com 95 espécies de bactérias. Quando se fez a análise por meio de técnicas de biologia molecular, no caso a metagenômica, o resultado multiplicou essa quantidade por mais de 10, e foram encontradas mais de 1.500 espécies de bactérias convivendo no guaraná.
Nesse último caso, não foi necessário isolar o organismo em meio de cultura para identificação. Com a metagenômica, o DNA do microrganismo é extraído e sequenciado. Isso permite identificar um número maior de microrganismos, pois nem todas as espécies conseguem sobreviver fora das condições naturais e crescer em meio de cultura artificial.
“O que se consegue cultivar em laboratório é um percentual muito pequeno daquilo que realmente existe ali”, explica Gilvan Silva.
Por meio do projeto Microoma, pela primeira vez foi realizado o metagenoma de todas as partes da planta do guaranazeiro, incluindo raízes, caule, folhas e frutos. Os pesquisadores Gilvan Silva (foto) e Marcos Soares relatam que já existiam análises de partes, mas ainda não havia sido feito esse estudo com o microbioma da planta inteira.
“A riqueza de espécies é bastante significativa, surpreende”, afirma Silva.
Fonte: Embrapa