Uma pesquisa que está sendo desenvolvida em São Carlos, interior de São Paulo, comprova que o efluente de esgoto tratado gerado na fossa séptica biodigestora é um biofertilizante que pode substituir a aplicação do nitrogênio sintético na adubação de pequenas lavouras. O adubo orgânico pode ser uma excelente alternativa para produtores que não têm acesso a nenhum tipo de fertilizante químico.
Embora já seja recomendado pela Organização Mundial de Saúde (OMS), o efluente de esgoto tratado ainda não tem norma de uso no Brasil. Além de alternativa ao fertilizante sintético, a aplicação do adubo orgânico gerado pelo sistema de saneamento básico rural visa a preservação ambiental com a destinação adequada e a reciclagem do uso dos macronutrientes: nitrogênio, fósforo e potássio (NPK).
Curso de Saneamento Básico Rural
Os resultados obtidos com a aplicação do biofertilizante na produção de milho serão conferidos em campo nesta quarta-feira (5/12) quando mais de 70 pessoas, de cerca de 50 instituições, do Brasil e do exterior, farão uma visita guiada ao experimento. A atividade integra o terceiro Curso de Saneamento Básico Rural, promovido em São Carlos, e também o terceiro previsto em um convênio de cooperação financeira firmado entre a Embrapa Instrumentação (SP) e a Fundação Banco do Brasil (FBB).
O pesquisador Wilson Tadeu Lopes da Silva e o analista Renato Marmo, ambos da Embrapa, são os responsáveis pelo curso. Eles contam que a parceria entre as duas instituições vai permitir maior difusão do uso da fossa séptica biodigestora nas cinco regiões do País, com o apoio de mais seis unidades da Embrapa, organizações não governamentais, associações de produtores rurais e empresas de assistência técnica.
Os pesquisadores da Embrapa Instrumentação (SP) conduziram uma lavoura de milho para silagem de maneira convencional, aplicando NPK. Em outra, empregaram apenas fósforo e potássio e acrescentaram o efluente de esgoto tratado no lugar do nitrogênio. Os resultados foram produções semelhantes de grãos nas duas áreas. O milho foi escolhido por ser uma cultura de ciclo curto e sensível à carência do nitrogênio.
“Os resultados sugerem que o biofertilizante pode ser utilizado substituindo o uso de nitrogênio sintético, além de melhorar a qualidade do solo e a sustentabilidade dos sistemas agrícolas”, avalia o pesquisador da Embrapa Wilson Tadeu, que coordena o experimento com o efluente. Segundo ele, a eficiência do adubo orgânico faz dele uma boa alternativa para o produtor rural que adota o sistema de saneamento básico na propriedade, em substituição ao uso das chamadas “fossas negras”.
Produção local
O biofertilizante é produzido na própria fazenda, após a instalação da fossa séptica biodigestora, tecnologia desenvolvida pela Embrapa em 2001 que beneficia mais de 50 mil brasileiros que moram no campo. A montagem de um conjunto básico, projetado para uma residência com cinco moradores, é feita com três caixas d’água de mil litros, tubos, conexões, válvulas e registros. A tubulação do vaso sanitário é desviada para essa fossa, onde o esgoto doméstico, com o auxílio de um pouco de esterco bovino fresco, é tratado e transformado em adubo orgânico pelo processo de biodigestão anaeróbia. O adubo deve ser aplicado diretamente no solo e não deve ser usado em alimentos que estejam em contato direto com ele e que são consumidos crus, como hortaliças, por exemplo.
A tecnologia traz soluções importantes para o pequeno produtor: gera adubo para a lavoura e proporciona saneamento rural adequado, que ainda é inexistente na maioria das propriedades brasileiras.
Mais biomassa por hectare
O pesquisador Wilson Tadeu explicou que o estudo avaliou cinco arranjos diferentes. O primeiro, nomeado “NPK”, recebeu esses três elementos químicos. A investigação observou que a adubação das plantas com esses nutrientes produziu 8.205 kg por hectare de biomassa (matéria seca).
No segundo arranjo, 100% do nitrogênio aplicado foi obtido do biofertilizante gerado pela fossa séptica biodigestora, que também contém quantidades menores de potássio e fósforo, os quais foram complementados com fertilizantes comerciais desses dois nutrientes. Nomeado de “EPK” (efluente, fósforo e potássio), ele produziu 8.504 kg/ha, superior ao primeiro arranjo.
No arranjo “E”, com aplicação apenas de efluente, a pesquisa constatou que a produção de matéria seca atingiu 5.682 kg/ha. Já no chamado “PK”, área que recebeu somente potássio e fósforo, o cultivo foi de 5.350 kg/ha. No último arranjo, denominado de “00”, que não recebeu nenhum tipo de fertilizante, a produção de biomassa foi bem inferior aos demais arranjos, totalizando apenas 3.277 kg/ha.
“Se compararmos a produção do arranjo ’E‘ com o arranjo ’00‘, observamos que o produtor rural pode ter um ganho significativo, porque, ao usar o efluente, ele poderá obter quase o dobro na produção, mesmo com carência de alguns nutrientes”, observa o pesquisador.
Ele esclareceu ainda que a escolha do milho considerou vários aspectos: a cultura permite dois ciclos anuais, é bastante produzida em pequena escala e é uma planta multifuncional – pode ser destinada à obtenção de biomassa ou produção de grãos.
Segundo Tadeu, o projeto prevê a avaliação do biofertilizante em médio e longo prazo, pelo menos por cinco anos, em várias safras de milho, analisando outros parâmetros físico-químicos e biológicos no solo e na cultura, a fim de proporcionar melhor conhecimento dos benefícios do efluente como fertilizante.
Sistema simples e eficiente
Referência em saneamento básico rural com a recomendação do Ministério das Cidades para ser adotada no Programa Nacional de Habitação Rural (PNHR), integrante do Programa Minha Casa, Minha Vida, o sistema da fossa séptica biodigestora, já adotado em mais de 250 municípios, gerou benefícios para mais de 57 mil pessoas com as mais de 11 mil unidades instaladas no território brasileiro.
Um sistema para uma família de cinco pessoas gera cerca de três mil litros de efluente tratado por mês, que podem ser utilizados para cultivos em pequenas escalas de produção de frutas, de mudas, plantas ornamentais, em propriedades de agricultura familiar do país.
Antes mesmo do estudo para comprovação da eficiência do adubo orgânico, Raimunda Marques Souza Vieira (foto), produtora rural de 67 anos, já havia observado os efeitos da aplicação do biofertilizante na produção de graviola. Na chácara São Luiz, no Km 22 do assentamento PA Aliança, em Porto Velho (RO), dona Raimunda e o marido, Luiz Santos Vieira, utilizam a fossa séptica biodigestora desde 2010.
“O adubo orgânico é muito bom. Nós usamos para adubar cerca de 50 pés de graviola, banana e citros que plantamos na chácara de 2.500 metros quadrados. Os pés de graviola que antes não produziam agora geram frutos que pesam até cinco quilos, depois de regadas com o biofertilizante”, conta. A produção representou uma importante fonte de renda para a família, que passou a comercializar a polpa da fruta a R$ 15 reais o quilo.
A família teve acesso à tecnologia graças a uma parceria entre a Fundação Cargill e a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID), com a participação da Prefeitura de Porto Velho e da Embrapa Instrumentação, que apresentaram o sistema à comunidade da Associação de Produtores Rurais da Linha 28 de Novembro (ASPROL 28).
Mas dona Raimunda não foi a única a observar a eficiência do adubo. No assentamento Santa Helena, em São Carlos, o produtor rural Sebastião Duque utiliza o biofertilizante para adubar citros e pés de banana. “Não conheço nada melhor para colocar nas plantas”, diz o assentado.
Falta de saneamento impacta a saúde e mananciais
Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) revelam que a população rural brasileira é de cerca de 30,5 milhões de pessoas, sendo que mais de 50% lançam seus resíduos inadequadamente. Cerca de 14% não possuem banheiros ou quaisquer instalações sanitárias adequadas, situação que traz prejuízos à qualidade de vida no campo e se reflete na saúde e bem-estar da população rural.
“As tecnologias sociais de saneamento básico rural são alternativas para o problema, porque são soluções individualizadas e que têm como premissa a simplicidade, baixo custo de implantação, facilidade de manutenção, operação e possibilidade de reuso do efluente como fertilizante agrícola”, avalia Wilson Tadeu.
A iniciativa desenvolvida pela Embrapa Instrumentação foi certificada pelo Prêmio Fundação Banco do Brasil de Tecnologia Social em 2003 e, desde então, tem sido reaplicada pela Fundação em localidades que não possuem saneamento básico. “As fossas sépticas biodigestoras são eficazes no tratamento dos dejetos humanos, ajudam a evitar a contaminação dos lençóis freáticos, previnem a propagação de doenças e ainda fornecem biofertilizantes para o solo”, afirma o presidente da FBB, Asclepius Soares.
Produtividade e segurança alimentar
Desenvolvidos com recursos da Embrapa Instrumentação, os estudos vêm sendo realizados há três anos no campo experimental do Laboratório de Referência Nacional de Agricultura de Precisão (Lanapre), em São Carlos (SP). A aplicação do efluente em experimentos com a cultura de milho, que tem ciclo de 100 a 120 dias, demonstrou ser viável para aumento da produtividade, segurança alimentar e para obtenção de biomassa, objetos de investigação da pesquisa.
Os ensaios foram conduzidos em uma área de mais de 1.800 metros quadrados, com quase 5 mil plantas, distribuídas em 15 parcelas com seis linhas de nove metros de comprimento, com cinco plantas por metro linear e espaçamento de 0,80 centímetro entre as linhas, totalizando 270 em cada parcela.
“Aplicamos cerca de 1.500 litros de biofertizante em cada parcela de 43,2 metros quadrados considerando os teores de concentração do efluente e as fases fisiológicas da cultura do milho entre os estágios V2 (planta com duas folhas) e V8 (com oito folhas definidas), explica o técnico da Embrapa e futuro engenheiro agrônomo Pedro Fernandes Bomfim, que acompanhou os experimentos em campo.
De acordo com ele, esse volume foi necessário para atingir a demanda equivalente da cultura de milho, de 100 kg de nitrogênio/ha, conforme recomendação do Boletim Técnico 100 do Instituto Agronômico de Campinas (IAC). Mas Bomfim observa que a dosagem do biofertizante aplicado vai depender sempre de estudos sobre as condições de concentração de nutrientes dos solos.
Fonte: Embrapa