Já passava das 21 horas quando o
agricultor João Carlos Carrion encerrava o expediente na fazenda em que é
funcionário, em Astorga, Norte do Paraná. Ele desceu do trator e fechava as
barras do pulverizador, no instante em que foi surpreendido por dois bandidos
armados – um com uma carabina, outro com um revólver. Carrion foi encapuzado,
amarrado e colocado no banco de trás do automóvel dos assaltantes. Enquanto um
dos ladrões rodava de carro com o agricultor, o outro levava o maquinário. Ele
foi libertado em um canavial já na alta madrugada, no município vizinho de Ângulo,
a 30 quilômetros de Astorga. O crime ocorreu em 24 de abril deste ano. O trator
John Deere 6100 (avaliado em R$ 120 mil) e o pulverizador Columbia (estimado em
R$ 30 mil) jamais foram encontrados.
Longe de ser uma exceção, o caso
ilustra uma realidade grave: a vulnerabilidade das zonas rurais, que tem
tornado o homem do campo e sua família alvos de quadrilhas. Segundo a
Secretaria de Estado da Segurança Pública (Sesp), ao longo dos últimos dois
anos e meio, o Paraná registrou 2.354 roubos a propriedades rurais (quando
bandidos armados rendem as vítimas) e 19.261 furtos (em que ladrões levam os
bens quando a vítima não está no local ou não percebem a ação). Além disso, 1.026 veículos foram furtados e
750 foram roubados no meio rural. Juntos, são quase 23,4 mil ocorrências em
meio rural, no período: média de 779 por mês. Por um lado, o número de casos
vem caindo, mas ainda estão em um patamar preocupante: são 25 furtos ou roubos
em meio rural por dia. Os dados dizem respeito apenas aos crimes em que as vítimas
registraram boletim de ocorrência.
“É um tipo de ocorrência que nos
preocupa. O produtor rural trabalha de sol e a sol, paga seus impostos e, mesmo
durante a pandemia do novo coronavírus, manteve a produção e sustentou a
economia. Fazemos nossa parte da porteira para dentro. Precisamos que o poder
público faça a parte dele e garanta nosso direito à segurança. Precisamos ter
segurança para continuar produzindo”, disse o presidente do Sistema
FAEP/SENAR-PR, Ágide Meneguette.
Há anos acompanhando a situação de perto, o Sistema FAEP/SENAR-PR tem adotado uma série de providências, seja cobrando autoridades ou orientando produtores rurais. No ano passado, por exemplo, a Federação enviou um ofício à Secretaria de Estado da Segurança Pública (Sesp), solicitando a criação de uma força-tarefa para investigar e desbaratar quadrilhas que têm como alvo propriedades rurais. Em 2017, a FAEP e o governo do Estado Paraná publicaram uma cartilha com orientações que os produtores podem tomar para minimizar a ação dos bandidos. A cartilha está disponível no nosso site, para acessar, clique aqui.
Além disso, a entidade também vem estimulando que os agropecuaristas fortaleçam a segurança local, participando dos Conselhos Comunitários de Segurança.
Dono da fazenda assaltada em
abril – e cuja ocorrência foi relatada no início desta reportagem –, o produtor
rural Ademir Primon conta que formalizou boletim de ocorrência assim que seu
funcionário foi localizado. O próprio produtor chegou a fazer buscas, seguindo
o rastro deixado pelo trator na estrada rural, mas não conseguiu encontrar os
maquinários. Apesar do empenho, ele se sente frustrado com a falta de
satisfação por parte do poder público.
“Nunca nem ligaram para perguntar
ou para me informar”, disse. “Eu tenho propriedade no Mato Grosso e no Mato
Grosso do Sul. Lá ninguém bagunça assim, não. Raramente essas coisas acontecem
lá. Quando acontece, a polícia vai atrás e pega. Lá, a bandidagem não se cria”,
acrescentou.
Bens agropecuários na mira
Os casos sugerem que, cada vez
mais, os bandidos estão de olho em bens específicos, diretamente relacionados à
atividade rural, como máquinas e insumos, além dos próprios produtos
agropecuários. Em 30 de maio de 2019, por exemplo, o produtor Volter Lucas Schwerz
foi rendido por um homem armado, quando terminava de ordenhar as vacas em sua
propriedade, em Cidade Gaúcha, Noroeste do Paraná. Outros três bandidos
apareceram e a quadrilha o levou para dentro de casa, onde estava o filho do
pecuarista, que tinha nove anos de idade. Ali, os ladrões começaram a perguntar
sobre o trator, um John Deere, que Schwerz tem.
“Eles especulavam comigo que tipo
de trator era. Aí, um deles se afastava e conversava por telefone com o
receptador. O modelo acabou não interessando e eles não levaram o trator”,
disse o produtor.
Os bandidos, no entanto, não
perderam a viagem. Lotaram o carro de Schwerz, um Nissan Versa, com objetos de
valor que encontraram na casa, como um notebook, R$ 1,5 mil em dinheiro,
algumas joias e até carne que estava no freezer. Pai e filho foram levados
pelos bandidos a um canavial que fica a 12 quilômetros da fazenda. Lá, foram
soltos, durante a madrugada. Os ladrões optaram por não levar a caminhonete
F-350 que havia na propriedade. As vítimas voltaram à propriedade andando.
Posteriormente, a polícia prendeu uma quadrilha na região e Schwerz foi chamado
para reconhecer os bandidos, mas não foi possível identificá-los, já que os
assaltantes estavam encapuzados quando invadiram sua fazenda.
“Na hora que você está nas mãos
dos bandidos, se passam mil coisas na cabeça. Dá uma sensação de impotência
muito grande, principalmente com filho pequeno”, disse Schwerz. “Eles eram
franzinos, moleques, todos com menos de 25 anos”, acrescentou.
Ocorrido em maio de 2018, outro
caso também ilustra o foco de quadrilhas em insumos agropecuários. Em uma noi te,
um carro estacionou em frente à propriedade de Wolfgang Graf, às margens da
PR-317, em Engenheiro Beltrão, Noroeste do Paraná. Os cachorros começaram a
latir, chamando a atenção do produtor rural. Era uma estratégia dos bandidos.
Enquanto as atenções se voltavam para a frente da sede, parte da quadrilha
invadiu o barracão que ficava aos fundos da propriedade. Somente no dia
seguinte é que Graf viu que os ladrões tinham furtado 180 quilos de inseticida
(avaliados em R$ 28 mil), além de 18 galões de glifosato e dez galões de outro
defensivo.
“Também levaram algumas
ferramentas, como motosserra e motobomba. A Polícia Civil fez perícia e
constatou que foram cinco pessoas que entraram e que usaram uma caminhonete
pequena. Na mesma noite, levaram uma carga de sementes de milho de um vizinho,
oito quilômetros adiante”, disse Graf.
Entre o natal e réveillon do ano
passado, a propriedade de João Laertes também foi alvo de uma quadrilha, no
distrito de Entre Rios, em Guarapuava, no Centro-Sul. À noite, um homem chamou
o gerente da fazenda pelo nome e quando ele saiu para atender, foi rendido por
outros dois bandidos. O funcionário foi amarrado e sofreu tortura psicológica –
os assaltantes pegaram uma seringa veterinária e ameaçavam aplicar Ivomec
(medicamento veterinário para controle de parasitas) na vítima. Levaram
ferramentas que estavam no barracão, como um compressor de ar. Além disso,
mataram e carnearam uma vaca, que estava apartada no local.
“A casa do colaborador fica a
cerca de 100 metros da sede. Acho que não vieram à sede, porque viram que tem
alarme”, disse Laertes. “O problema é que esse tipo de crime cria um trauma
muito grande. Até hoje o funcionário está apavorado”, disse.
Receptadores
Para as forças de segurança, este
tipo de crime só se sustenta em razão de uma figura específica: a do
receptador, ou seja, aquele que compra os produtos furtados ou roubados.
Afinal, as quadrilhas de assaltantes só agem porque há mercado para os bens
obtidos de forma criminosa. A pena prevista para receptação não passa de cinco
anos de reclusão. Na maioria dos casos, esses criminosos respondem pelo crime
em liberdade. Em caso de condenação, podem cumprir a pena em regime semiaberto.
“O receptador é o principal. A
gente tem mais aversão ao receptador do que ao próprio ladrão. Esses
receptadores são, em geral, donos de mercados, de frigoríficos, fazendeiros. O
principal articulador do furto de gado e de produtos agropecuários é o receptador”,
disse o delegado João Paulo Sorigotti, da comarca de Terra Rica, Noroeste do
Paraná.
No caso de implementos agrícolas
e de insumos, fica ainda mais claro que os produtos furtados ou roubados são
comercializados entre os próprios produtores rurais, em um mercado clandestino
e criminoso. Por isso, Wolfgang Graf, por exemplo, aponta que os
agropecuaristas devem ter consciência e jamais comprar bens de procedência
duvidosa e sem nota fiscal. Caso contrário, se estará fomentando esse círculo
criminoso.
“Eu já tive oferta de insumos com
preço 30% mais barato. Quando fui comprar, o vendedor não tinha nota,
desconversou. Eu não comprei e acho que ninguém deve comprar. Senão, o
agricultor está lesando outro agricultor”, opinou.
Em setembro de 2018, por exemplo,
a Polícia Federal (PF) deflagrou a Operação Roda Livre. Em menos de um mês, 18
tratores foram recuperados. Quatro dessas máquinas estavam em uma revendedora
de veículos de Santo Antônio do Sudoeste, no Sudoeste, onde os equipamentos
eram negociados com produtores rurais da região. Na maioria dos casos, os
agricultores compravam o implemento de boa-fé.
O problema, no entanto, é que as
quadrilhas estão cada vez mais especializadas, o que dificulta o trabalho da
polícia. Em alguns casos, os bandidos se articulam com servidores públicos. Em
um dos casos, um secretário municipal de agricultura chegou a ser preso. Ele
emitia notas frias da carga que ainda seria furtada ou roubada. Quando os
veículos eram abordados, os documentos falsos ajudavam a burlar a fiscalização.
“Nos últimos anos, tivemos duas
grandes operações na comarca. A gente recuperou uma carga de carneiros furtados
e de gado [bovino] também. Desvendamos uma associação criminosa que tinha até
secretário envolvido nos furtos de animais, que eram levados para um
frigorífico. Já tinha mercados grandes que receptavam o produto”, disse o
delegado Sorigotti. “Mas eles não ficaram presos, porque é um crime com pena
baixa, porque [o furto] não envolve violência. Normalmente, eles não ficam presos”,
acrescentou.
Falta de estrutura dificulta prevenção e investigação
A prevenção e a investigação de
crimes ocorridos em meios rurais esbarram em um problema estrutural crônico. A
Polícia Militar (PM) – corporação responsável pelo trabalho preventivo – tem um
efetivo de 19,2 mil agentes, dos quais 12,1 mil estão lotados no interior do
Paraná. Como parte deles cumpre apenas funções administrativas e o efetivo se
divide em escalas, o número de policiais nas ruas a cada turno é bem menor. Nos
municípios com menos de 10 mil habitantes, o número de policiais é
insuficiente: em regra, são dois policiais na ativa, a cada turno. Com isso, é
impossível que se mantenha o policiamento ostensivo, principalmente em áreas
rurais, mais afastadas.
Os produtores rurais reconhecem o
empenho dos agentes, mas destacam a falta de infraestrutura. “A conversa com a
PM tem sido boa. Eles fazem o que podem, mas são só seis policiais, em três
escalas. Ou seja, são dois [policiais] por turno. E eles também têm que cuidar
de outros três distritos. Não tem condições de fazer rondas, de fazer o
preventivo”, apontou Wolfgang Graf, que também é presidente do Sindicato Rural
de Engenheiro Beltrão.
Além disso, cerca de 150
municípios paranaenses não têm delegacia da Polícia Civil – responsável pela
investigação dos crimes. Quando os furtos ou roubos ocorrem em localidades sem
policiais civis, os casos são destinados à delegacia da comarca. O problema é
que, mais uma vez, essas unidades enfrentam acúmulo de serviço e falta de
efetivo. Quando foi vítima dos bandidos, por exemplo, o produtor Ademir Primon
disse que chegou a dar suporte à polícia pagando combustível “do bolso” para
que as viaturas pudessem ser usadas em diligências pela região.
“A segurança aqui na região é uma
coisa vergonhosa. Quando tem alguma ocorrência, os policiais estão tão
desassistidos que não têm condições de dar suporte para nada”, disse.
Dinâmica
Além disso, a própria dinâmica
dos casos dificulta a investigação. Isso porque as propriedades rurais se
encontram, na maioria dos casos, em vias pouco movimentadas. Com isso,
raramente há testemunhas que possam ajudar a polícia a identificar as
quadrilhas e chegar aos bandidos. Mesmo em caso de roubos – em que os
produtores têm contato direto com os assaltantes –, é difícil reconhecê-los,
seja pelo fato de usarem máscaras, seja pelo fato estado emocional em que as
vítimas ficam após as ações criminosas.
O delegado Sorigotti aponta,
ainda, que a rápida destinação que os bandidos dão aos bens subtraídos
dificulta a elucidação dos casos. “No caso de furto de gado, por exemplo: às
vezes, o pecuarista descobre um ou dois dias depois. Quando é boi gordo, os
bandidos levam direto para o frigorífico e já matam no mesmo dia. Então, é um
crime bem difícil de descobrir”, apontou.
Neste contexto, as denúncias são
fundamentais para ajudar a polícia. Em abril deste ano, PM localizou 27 cabeças
de gado que haviam sido furtadas de uma propriedade rural em Iretama,
Centro-Oeste do Paraná, após ter recebido informações anônimas. Por meio de nota,
a Sesp disse que, além da articulação entre a PM e a Polícia Civil, conta com o
trabalho de inteligência policial, “para levantamento de informações, as quais
embasam o policiamento e o planejamento de ações e operações”. A pasta
acrescenta que tem procurado ampliar a integração das forças policiais “junto a
prefeituras e outras instituições, justamente para coibir ainda mais a ação de
criminosos em todas as áreas”.
Estimulados pela FAEP, conselhos contribuem com segurança dos
municípios
Em 31 de julho de 2018, um
produtor rural e a esposa tiveram a caminhonete roubada e foram sequestrados,
em Santa Isabel do Ivaí, no Noroeste do Paraná. As vítimas foram libertadas
pela Polícia Militar (PM), depois que imagens de câmeras de segurança
instaladas em uma via rural registrou a passagem do veículo levado pelos
bandidos. O sistema de vídeo-monitoramento do município foi custeado pelo
Conselho Comunitário de Segurança (Conseg), que também tem auxiliado as
autoridades em outras inúmeras ações.
Presidente de Conseg de Santa
Isabel do Ivaí, desde junho de 2016, e atual diretor-executivo do sindicato
rural local, Dionísio Roberto Torrezan, conta que o conselho investiu R$ 80 mil
na instalação do sistema de monitoramento, composto por 23 câmeras – quatro
delas em estradas rurais. O montante foi investido pela própria comunidade.
Desde então, o equipamento já ajudou na elucidação de vários crimes e
contribuiu para reduzir o número de ocorrências.
“Não foi nem uma nem duas vezes.
Foram muitas situações de furtos e roubos de gado, caminhonetes,
estabelecimentos comerciais, residências e propriedades rurais, tanto em Santa
Isabel do Ivaí, quanto em municípios vizinhos”, relembra Torrezan. “Nossa
região é de fronteira e estava muito visada, o que fez com que a sociedade se
organizasse por meio do Conseg”, acrescenta.
A participação efetiva em
Conselhos Comunitários de Segurança é uma das orientações da FAEP aos
sindicatos rurais do Estado. Na avaliação da Federação, a ação dos Consegs é
uma forma de os produtores rurais participarem das decisões relacionadas às
políticas de segurança dos municípios e de colaborar com as autoridades,
fortalecendo uma rede entre a sociedade e as polícias Civil e Militar.
O Sindicato Rural de Apucarana
também participa do Conseg há mais de uma década. Presidente da entidade,
Claudomiro Rodrigues da Silva, destaca a proximidade que o setor agropecuário
estabeleceu com as forças policiais do município. Hoje, a prioridade do
sindicalista é atuar para que Apucarana consiga uma nova patrulha rural. Ele
destaca a necessidade de os produtores rurais participarem ainda mais das
discussões e decisões do conselho.
“A gente decidiu montar o Conseg,
na época, por causa da necessidade. A gente se organizou com a polícia e
conseguimos muitas coisas. Fizemos cartilhas de orientação e várias reuniões
nos distritos”, conta. “Mas o produtor precisa participar ainda mais. Muitos
ainda pensam assim: ‘se não aconteceu comigo, por que eu vou participar?’. Mas
todo mundo está sujeito. Não pode deixar para fechar a porteira só depois que o
boi passar”, acrescenta.
A notícia Criminosos especializados miram máquinas e insumos agrícolas no Paraná apareceu pela primeira vez em Sistema FAEP.
Fonte: Sistema FAEP