O bem-estar animal vem ganhando,
cada vez mais, a atenção de parte da sociedade, principalmente a respeito de
sua aplicabilidade aos contextos científico e produtivo. Nos últimos anos, o
tema deixou de ser uma preocupação apenas da indústria agropecuária, e passou a
ser uma demanda crescente entre os consumidores, a partir da preocupação com
questões de origem, ética e sustentabilidade. Dessa forma, o bem-estar animal
tornou-se um dos norteadores da atividade produtiva, estendendo-se por todas as
cadeias da proteína animal e cada uma das etapas da produção.
Segundo especialistas, o conceito
de bem-estar animal envolve uma série de indicadores. Mas, em termos simples,
está relacionado à garantia de qualidade de vida ao animal, a partir de
princípios éticos e científicos. Na prática, é possível garantir condições e
instituir práticas para que este indivíduo possa se desenvolver e se adaptar da
melhor forma possível ao ambiente em que vive. Ainda, o bem-estar animal, além
de ser uma exigência do mercado consumidor, está intrinsecamente relacionado à
produtividade, qualidade da produção e segurança alimentar.
“O produtor rural é o maior
interessado em promover o bem-estar, pois, desta forma, o animal produz mais e
melhor. Práticas de manejo, instalações e transporte inadequados resultam em
situações de estresse que interferem diretamente na produção. Existem pesquisas
que apontam até 20% de acréscimo na produtividade, dependendo da cadeia
produtiva, quando boas práticas de bem-estar animal são instituídas”, destaca o
técnico do Departamento Técnico Econômico (DTE) da FAEP, Guilherme Souza Dias.
A avaliação de bem-estar animal é
baseada em critérios científicos e objetivos, por meio da medição de
indicadores clínicos do animal e sua relação com o ambiente. A partir destes
resultados, são definidas as práticas mais adequadas de acordo com seus efeitos
na qualidade de vida do animal e, também, desenvolvidas novas tecnologias para
auxiliar nas atividades do dia a dia.
Evolução
O desenvolvimento do bem-estar
animal enquanto ciência começou na década de 60, impulsionado pela publicação
do livro “Animal Machines” (em português: “Máquinas Animais”), da jornalista e
médica veterinária Ruth Harrison. A obra chamou atenção da sociedade e levantou
o debate acerca do tema, em um momento em que a produção aumentava em escala e
mecanização.
A partir daí, uma série de
investigações foi iniciada na Inglaterra levando à criação do Farm Animal
Welfare Council (em português: Conselho de Bem-Estar dos Animais de Fazenda)
que, em 1979, publicou um documento que definia as cinco liberdades dos
animais: estar livre de fome e sede (liberdade nutricional); estar livre de
desconforto (liberdade ambiental); estar livre de dor, doença e injúria
(liberdade sanitária); ter liberdade para expressar os comportamentos naturais
da espécie (liberdade comportamental) e estar livre de medo, estresse e a
angústia (liberdade psicológica).
Segundo a professora da
Universidade Estadual de Londrina (UEL) Ana Maria Bridi, estes princípios
norteiam, até hoje, as boas práticas de bem-estar animal e legislações
relativas ao assunto. No entanto, com o passar dos anos e desenvolvimento das
pesquisas, chegou-se à conclusão que, na prática, atingir estas cinco
liberdades não era possível, o que levou a uma mudança de conceito. Atualmente,
utiliza-se o modelo dos cinco domínios: nutrição, ambiente, saúde,
comportamento e estado mental. “Os animais na natureza não atingem todas essas
liberdades de forma integral, nem mesmo os seres humanos. Então, é preciso
garantir condições para que esses animais expressem o essencial da espécie e
tenham qualidade de vida no ambiente em que vivem”, aponta.
De acordo com a professora da
Universidade Positivo (UP) e especialista em ciência animal, Andreia de Paula
Vieira, todas as práticas da criação de animais envolvem bem-estar animal em
algum nível, sendo algo essencial aos processos de produção nas propriedades
rurais e agroindústrias. “Os cientistas encontram soluções que promovem o
manejo ambiental sustentável, tão discutido e demandado pela sociedade,
especialmente a partir da segunda metade deste século. De forma bem simples, a
ciência nos apresenta soluções práticas e sustentáveis para estes desafios,
levando sempre em consideração as capacidades e necessidades do animal e de que
forma é possível melhorar sua qualidade de vida nos diferentes contextos”,
define.
Tecnologias inteligentes
Além dos princípios éticos que
norteiam o bem-estar animal, a ciência também comprovou o impacto direto na
cadeia produtiva. Garantir boas condições, manejo adequado e respeito ao
comportamento natural de um animal significa investir em maior e melhor
desempenho e, consequentemente, um produto com mais qualidade, segurança e
valor agregado.
De acordo com a diretora técnica
da Associação Brasileira de Proteína Animal (ABPA), Sula Alves, o bem-estar
animal é atingido por meio do equilíbrio entre os diversos aspectos que
envolvem a vida do animal. “Quando falamos de bem-estar animal, existem
diversas práticas envolvidas. Não podemos focar apenas na questão da liberdade
de locomoção do animal no ambiente, algo bastante debatido, e desconsiderar o
aspecto sanitário, por exemplo, também muito importante para o bem-estar desse
animal e consequentemente para a produção de um alimento seguro”, salienta.
Manejo sanitário, aspectos como
boas instalações e nutrição de qualidade são condições fundamentais para
preservar o conforto animal. Ainda, outro ponto levantado pela diretora técnica
da ABPA envolve a capacitação de funcionários, que devem conhecer as particularidades
das espécies e boas práticas de manejo.
Junto ao avanço dos métodos
científicos, a implantação de tecnologias inteligentes tem se consolidado como
estratégia para auxiliar no dia a dia da atividade pecuária e,
consequentemente, melhorar as condições de bem-estar animal. A aplicação desses
sistemas modernos – também chamados de pecuária de precisão – se baseia no uso
de dispositivos de monitoramento não invasivos que detectam mudanças no
comportamento do animal. Dessa forma, o produtor rural obtém informações
precisas e completas sobre as condições de saúde do animal, podendo identificar
problemas de maneira rápida e efetiva. No campo científico, tais tecnologias
também auxiliam na validação de novas práticas de bem-estar animal, evitando dores
e sofrimentos desnecessários.
Na suinocultura, por exemplo, por
meio de um sistema de visão com câmeras 3D, é possível pesar os animais sem a
necessidade de interferir no ambiente, reduzindo o estresse. Esse sistema,
desenvolvido pela empresa de consultoria F&S Consulting e Universidade de
São Paulo (USP), monitora o peso e conforto térmico e detecta o comportamento
dos suínos por meio de algoritmos, disponibilizando relatórios para análises
completas e permitindo intervenções clínicas antecipadas, quando necessárias.
Na prática
Para o médico veterinário e
fundador da F&S Consulting, Leonardo De La Vega, o Brasil tem sido pioneiro
no desenvolvimento de conhecimento de bem-estar animal aplicado na prática.
Segundo Vega, a exigência do mercado consumidor por uma produção de alimentos
mais transparente é uma tendência crescente que tem moldado as práticas dentro
das propriedades rurais e agroindústrias, levando à promoção de uma atividade
mais sustentável.
“As grandes integradoras,
principalmente, têm tido um papel importante no desenvolvimento do bem-estar
animal como um todo, independentemente da espécie. Isso tem avançado muito por
conta da ciência, da tecnologia, inclusive pelas demandas que temos que
atender, pelo fato do Brasil ser um grande player, um fornecedor de alimentos
de origem animal para o mundo inteiro”, explica Vega.
Desde 2015, em parceria com a
USP, a F&S Consulting desenvolve estudos por meio da utilização de um
sistema de eletroencefalografia (EEG) e eletrocardiografia (ECG) para medir os
sinais cerebrais e cardíacos dos animais no momento do abate para, dessa forma,
melhorar as condições do ambiente e aperfeiçoar métodos.
“À medida que são ajustados o
ambiente e os procedimentos de abate e pré-abate para que os animais não sintam
dor e sofrimento, a gente acaba validando essas práticas. Isso representa uma
revolução na forma de medir o quanto os processos estão corretos e compatíveis
com o bem-estar dos animais e com os preceitos do abate humanitário”, afirma
Vega.
Outro exemplo de tecnologia
aplicada é a biotecnologia, ou seja, a utilização de sistemas biológicos para
criar ou modificar produtos e/ou processos. No caso do bem-estar animal,
segundo Vega, existe um trabalho realizado com probióticos para melhorar o comportamento
das aves poedeiras e evitar a manifestação do chamado comportamento agonístico,
ligado à agressividade e briga entre os animais, resultando, até mesmo, em
canibalismo.
“Se é possível garantir um
comportamento mais amigável entre elas, pelo simples fato de dar uma nutrição
mais adequada, que estabiliza a saúde intestinal, e esse comportamento reativo
é reduzido, a gente pode reduzir ou mesmo eliminar a debicagem destes animais”,
explica Vega. “A ciência nos dá o caminho e produz tecnologias para garantir
inovação e melhorar o bem-estar animal, sustentabilidade no campo, retorno
financeiro na atividade produtiva e saúde única”, conclui Vega.
Sem sofrimento
No momento do abate, é
obrigatório que o animal seja insensibilizado, ou seja, esteja inconsciente a
fim de evitar a dor e o sofrimento. O Ministério da Agricultura, Pecuária e
Abastecimento (Mapa) estabelece um conjunto de diretrizes técnicas e
científicas que garantam o bem-estar dos animais desde a recepção até a
operação de sangria.
Além da fiscalização no momento
do abate, nos locais de produção, há a avaliação de profissionais da área, como
médicos veterinários e zootecnistas, para a verificação dos indicadores
clínicos dos animais em todas as etapas da cadeia produtiva, como estado físico,
de comportamento e histórico de doenças. Também são avaliados os recursos
disponíveis no ambiente, nutrição, tipos de instalação, densidade em que os
animais estão sendo criados, transporte e manejo sanitário.
“O bem-estar animal é observado
do nascimento ao abate e todo o processo é fiscalizado, com uma série de
protocolos. O sistema produtivo é extremamente desenvolvido e verticalizado de
maneira muito intensa. Além dos aspectos éticos, porque o animal é um ser
senciente, e vantagens econômicas, pelo aumento na produtividade, é uma questão
de estabelecer uma boa relação com os consumidores e mostrar segurança na
produção”, destaca o médico veterinário e suinocultor Cleandro Pazinato Dias.
Menos estresse, mais qualidade
Em caso de estresse no manejo,
uma das características que sofrem alteração é a cor da carne. A longo prazo, o
estresse pode acarretar em redução das reservas de glicogênio do animal,
originando carnes denominadas DFD – termo que vem do inglês dark, firm and dry
e significa escura, firme e seca.
Essas carnes possuem maior
capacidade de retenção de água – por isso são mais escuras – e suscetíveis a
alterações microbianas, ou seja, podem apresentar problemas com prazo de
validade. Transporte inadequado, jejum prolongado e contato com animais
estranhos também podem influenciar nesse aspecto.
Quando o animal é submetido a uma
alta carga de estresse no momento do pré-abate, ou seja, em um curto espaço de
tempo, produz a chamada PSE – pale, soft and exudative, que significa pálida,
mole e exsudativa. No manejo dos animais, alguns fatores podem influenciar a
formação desse tipo de carne, como o tempo de transporte, a temperatura do
ambiente durante o trajeto, jejum pré-abate e tempo de descanso antes do abate.
Na avicultura, fatores sanitários
e de estresse ambiental, como altas temperaturas e densidade (alto número de
aves no mesmo local), provocam alterações que comprometem a qualidade da casca
dos ovos, desencadeando problemas tais como casca mole, rugosa ou mesmo sem
casca.
O estresse térmico é um aspecto
que interfere no bem-estar animal de todas as cadeias. Na pecuária de leite, o
animal pode ter redução na eficiência produtiva e reprodutiva, além de
distúrbios metabólicos e maiores chances de adoecimento. Na suinocultura, a
taxa de conversão alimentar é afetada, ou seja, o animal terá de comer mais
para obter o mesmo peso, o que acarreta em gastos maiores.
Bem-estar animal x tratamento humanizado
É importante ressaltar que
bem-estar animal aplicado na cadeia de produção é diferente de tratamento
humanizado. Segundo especialistas, a qualidade de vida do animal deve ser
resguardada com base em questões éticas e que, portanto, evitem o sofrimento
desnecessário do animal. No entanto, tais práticas não devem ser associadas ou
definidas de acordo com valores próprios do ser humano – também chamado de
antropomorfização.
Para a professora da Universidade
Estadual de Londrina (UEL) Ana Maria Bridi, é preciso ter cuidado para não cair
em extremismos. “A ciência já entende que os animais sentem dor, têm emoções,
mas isso não significa que são iguais aos seres humanos. Nós não podemos
atribuir características humanas aos animais. Colocar isso como referência é
ignorar uma série de outros comportamentos e características próprias deles”,
afirma. Para a especialista, aí que está o papel da ciência: compreender as
necessidades dos animais a partir do comportamento inerente à espécie, e,
assim, melhorar o sistema de produção.
No caso do ativismo em prol dos
direitos dos animais, como o movimento vegano, contra o consumo de alimentos e
outros produtos de origem animal, a resposta dos especialistas é a mesma: a
escolha moral de uma causa não deve ser um posicionamento absoluto e ignorar a
ciência e, inclusive, contextos culturais.
“Se uma parte da sociedade
questiona ou entende que alguma prática não é boa, é a ciência que vai estudar
isso para verificar a veracidade. Os animais têm características e necessidades
diferentes e, principalmente, os de produção vivem em outro contexto”, aponta o
médico veterinário Cleandro Pazinato Dias.
Segundo a diretora técnica da
ABPA, Sula Alves, também é preciso colocar em perspectiva diversos fatores,
como o poder aquisitivo da população, a crescente demanda mundial na produção
de alimentos e os aspectos sanitários que regulam a atividade.
“Existem regras que fazem parte
de um controle sanitário para garantir que esse alimento produzido chegue com
segurança à mesa do consumidor. É por isso que a ciência tem o papel constante
de pensar e desenvolver práticas que encontrem o equilíbrio, garantindo todas
as possíveis condições de conforto para um animal, sem deixar de lado o aspecto
sanitário e sem onerar o bolso do produtor e do consumidor”, observa.
A professora Andreia de Paula Vieira reforça que as ações de bem-estar animal na cadeia produtiva são voltadas às práticas de cuidado animal dentro do contexto cultural da sociedade e da realidade dos produtores rurais. “A carne e o leite são alimentos com consideráveis significados evolutivos, culturais, históricos, sociais, simbólicos e profissionais, que incluem o compromisso e a responsabilidade dos produtores em cuidar de seus animais e do ambiente, bem como de outros profissionais em garantir aos cidadãos, o acesso a alimentos saudáveis, produzidos de forma sustentável e ética, ao invés de uma proteína sintética produzida em laboratório”, salienta.
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A notícia Ciência e indicadores garantem bem-estar animal no campo apareceu pela primeira vez em Sistema FAEP.
Fonte: Sistema FAEP